Christian Theology: An Introduction, Third Edition by Alister E. McGrath, p. 255-257.
O primeiro volume das Institutas de Calvino inicia-se com a discussão dessa indagação fundamental da teologia cristã: como podemos saber algo sobre Deus? Calvino afirma que é possível discernir um conhecimento geral de Deus por toda a criação, daquilo que é natural – na humanidade, na natureza e no processo histórico em si.
As duas razões principais desse conhecimento são identificadas: uma delas é subjetiva, e a outra, objetiva. A primeira razão é um “senso do divino” (sensus divinitatis) ou uma “semente da religião” (semen religionis) que foi plantada por Deus em cada ser humano. Ele dotou os seres humanos com um senso ou uma percepção inerentes acerca da existência de Deus. E como se houvesse algo sobre Deus gravado no coração de cada ser humano.
Percepção Natural de Deus
Calvino identifica três consequências que resultam dessa percepção natural de Deus: a universalidade da religião (a qual se degenera em idolatria, quando alienada do conhecimento da revelação cristã), uma consciência atormentada, aflita e um temor servil a Deus. Conforme sugere Calvino, todas essas coisas podem funcionar como pontos de contato para a proclamação do evangelho.
A segunda razão encontra-se na experiência e na reflexão sobre a ordem natural do mundo. O fato de que Deus é o criador, ao lado de um reconhecimento da justiça e da sabedoria divinas, pode ser obtido a partir da observação da criação, que atinge seu ápice com a humanidade.
É importante enfatizar que Calvino não dá indicação alguma de que esse conhecimento de Deus, a partir da criação, seja peculiar ou mesmo restrito aos cristãos. Calvino está alegando que qualquer pessoa, por intermédio de uma reflexão inteligente e racional acerca da criação, deve ser capaz de alcançar a noção de Deus. A criação é como um “teatro” ou um “espelho” que exibe a presença, a natureza e os atributos de Deus. Embora invisível e incompreensível, Deus quer ser conhecido sob a forma das coisas visíveis que criou, assumindo a roupagem da criação:
Existe na mente humana, por intermédio de um instinto natural, um senso do divino. Tomamos essa afirmação como algo indiscutível. Para que ninguém possa se escusar com o pretexto da ignorância, Deus sempre renova e, certas vezes, até amplia essa percepção, de forma que todas as pessoas, reconhecendo que existe um Deus e que ele é o criador, sejam condenadas por seu próprio testemunho, pois deixaram de adorá-lo e de entregar suas vidas a seu serviço…
Há inúmeras evidências, nos céus e na terra, que proclamam as maravilhas de sua sabedoria. Elas se encontram não apenas nos maiores enigmas que se apresentam para uma observação detalhada, e para os quais se voltam a astronomia, a medicina e toda as ciências naturais, mas também naqueles fatos que se impõem à vista das pessoas menos instruídas e mais simples, de maneira que elas não possam nem mesmo abrir seus olhos, sem que sejam obrigadas a vê-los.
Podemos claramente notar a presença de um tema semelhante nas obras do intelectual da renascença francesa, Jean Bodin (1539-1596), particularmente em sua obra Universae naturae theatrum [O teatro do universo natural]:
Não viemos ao teatro deste mundo por outro motivo que seja senão o fato de compreender o admirável poder, a perfeição e a sabedoria do maravilhoso criador de todas as coisas, pois isso é possível à medida que contemplamos a forma do universo e todos os atos e obras de Deus, sendo, portanto, arrastados em um louvor ainda mais intenso.
Revelação Natural
Calvino elogia, desse modo, as ciências naturais (como a astronomia e a medicina), por sua capacidade de esclarecer com maior profundidade a maravilhosa ordem da criação, bem como a sabedoria divina que essas ciências revelam. De maneira bastante significativa, no entanto, ele não apela, de maneira alguma, às fontes de revelação especificamente cristãs nesse aspecto.
Toda a argumentação baseia-se na observação empírica e na razão. Se ele introduz citações bíblicas, faz isso com o objetivo de reforçar um conhecimento geral e natural de Deus, e não como forma de afirmar esse conhecimento a priori. Conforme Calvino destaca, existe uma forma de perceber a presença de Deus em meio à criação, que é comum tanto aos que pertencem à comunidade cristã, quanto aos que estão fora dela.
Havendo estabelecido, portanto, os alicerces para um conhecimento geral de Deus, Calvino ressalta agora suas deficiências; nesse momento, ele dialoga com o escritor clássico romano, Cícero, cuja obra, On the nature o f the gods [Sobre a natureza dos deuses], representa possivelmente uma das apresentações clássicas de maior influência acerca do conhecimento natural de Deus.
Calvino alega que a distância epistêmica entre Deus e a humanidade, que já apresenta proporções enormes, é ampliada ainda mais em razão do pecado humano. Nosso conhecimento natural de Deus é imperfeito e obscuro, chegando ocasionalmente a ponto de entrar em contradição. Esse conhecimento natural serve para privar a humanidade de qualquer desculpa, no sentido de alegar a ignorância da vontade de Deus; entretanto, é completamente inadequado como base para um perfil mais completo sobre a natureza, o caráter e os propósitos de Deus.
Revelação Natural
Após enfatizar esse ponto, Calvino apresenta, a seguir, o conceito de revelação. As Escrituras reiteram aquilo que podemos conhecer de Deus por intermédio da natureza, ao mesmo tempo em que esclarecem e aprofundam essa revelação geral. “O conhecimento de Deus, claramente demonstrado pela ordem do universo e de toda a criação, é explicado de uma forma ainda mais clara e próxima na Palavra”.
É somente por intermédio das Escrituras que o cristão tem acesso ao conhecimento das ações redentoras de Deus na história, que culminaram na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Para Calvino, a revelação está centralizada na pessoa de Jesus Cristo; nosso conhecimento de Deus é mediado por Cristo. Portanto, Deus só pode ser conhecido em profundidade por intermédio de Jesus, que por sua vez, somente pode ser conhecido por intermédio das Escrituras; a natureza, porém, fornece importantes pontos de contato e ecos parciais dessa revelação.
Assim, a idéia básica que se encontra aqui é a de que o conhecimento de Deus, o criador, pode ser alcançado tanto por intermédio da natureza, quanto por intermédio da revelação, em que essa última esclarece, confirma e amplia aquilo que é possível conhecer por intermédio da natureza. O conhecimento de Deus como redentor – que para Calvino representa uma forma de conhecimento distintamente cristã – somente pode ser alcançado por meio da revelação em Cristo e por intermédio das Escrituras.